Economia no projeto de arquitetura (3)
"Crônicas marroquinas" -
Os custos e os benefícios nas relações de troca e de produção
Khaled Ghoubar

Khaled Ghoubar é professor do departamento de Tecnologia da Arquitetura da FAUUSP.

 

O comerciante Hassan pede para seu pequeno filho Said que o acompanhe no fechamento da loja, num fim de tarde agitado na Medina de Marrakech. Enquanto bate as portas e as janelas Hassan vai argüindo o filho, fazendo com que ele caia nas armadilhas que o seu raciocínio de menino pode conduzi-lo e assim ensinar-lhe alguma coisa.

"Diga-me Said, meu filho, quanto vale um camelo cego que era usado para atravessar o deserto?". Rapidamente o menino responde "Nada! Pois ele não saberá se guiar no deserto!". "Valerá pelo seu pêlo, por sua carne e pelo seu couro..." interrompe o pai. Enquanto o menino medita com indisfarçável ar de surpresa e frustração, o seu pai lhe apresenta uma outra questão: "Quanto vale o seu couro?". "Não sei, meu pai" responde o Said, envergonhado e cabisbaixo.

Para ajudá-lo no raciocínio o pai começa a lhe dar algumas pistas: "Se você perguntar ao Fawez - o artesão de couros que tem uma loja de malas e bolsas no fim da nossa rua - quantas peças daqueles tipos que ele vende na loja, podem ser feitas com o couro de um camelo adulto, você poderá ter uma preciosa pista". Os olhos de Said se iluminam pois, mesmo que ele não saiba precisar os valores, ele sabe agora quais poderão ser eles, como eles se articulam e onde pode obtê-los.

Antes que o menino começasse a expressar algum pensamento o pai acrescenta "Se você perguntar ao Fawez outras coisas, como quanto tempo se leva para executar uma bolsa e quanto ele gasta de dinheiro no total para confeccioná-la, você provavelmente ouvirá mentiras ou silêncio, pois ele desconfiará que você poderia estar se informando para que a nossa loja produza mercadorias mais baratas que as dele e assim lhe façamos concorrência. Certo?". "Acho que sim" responde Said.

"Certamente o Fawez está tendo algum lucro nesse negócio", continua Hassan, "E ele não deve pagar pelo couro de camelo mais do que uma certa quantia, senão ele diminuirá seu lucro, ou terá que aumentar o preço das peças!". "Mas pai, o Fawez não cria também alguns camelos?". "Sim, é verdade filho, esse é o jeito que ele achou para se defender da vontade que o vendedor de couros tem em aumentar o preço e seu lucro".

"E o Fawez sabe (continua Hassan), como nós também, que não se pode aumentar os preços das mercadorias se o cliente os achar caros, isto é, se as mercadorias não tiverem tantos encantamentos e utilidades que justifiquem um preço maior". O filho Said, já fascinado pelas regras do jogo que estão por detrás do comércio e das confecções de mercadorias, interrompe o pai "Se for muito bonita ela valerá mais!". Ao que o pai lhe responde "Certo, mas gastará mais tempo e habilidades do artesão, que não fica barato. Se a peça for bonita mas manchar na chuva, ou se rasgar com um peso ou esforço maiores ninguém vai querê-la".

O Said volta a desanimar "Há muitas coisas mais para resolver então?!", conclui enquanto estica a mão para o seu pai e se põem a andar sob um céu morno e rubro de uma tarde de outono no oeste da África árabe.

Hassan deixa passar alguns minutos em silêncio até perceber um sorriso tímido e meigo no olhar do filho e termina o assunto lhe dizendo "Said, meu filho, tudo tem algum valor se nos alegrar, nos for útil, se nos alimentar, nos ajudar enfim a viver, e algumas dessas coisas nós não pagamos por elas, como o ar que respiramos, a água que pegamos na fonte, o olhar que lançamos sobre os campos e os pássaros; mas há outras coisas que temos de pagar com o dinheiro que ganhamos com o nosso trabalho, e todos nós sem exceção alguma, e isso vale para quem vendemos e para de quem compramos, todos nós buscamos pagar o mínimo por elas o obter delas o máximo de utilidade e prazer".

"Este mundo, meu filho, é um grande bazaar..."

Série "Economia no projeto de arquitetura", estruturação geral dos conceitos fundamentais:

TEMÁRIO
1 - SOBRE GENERALIDADES
2 - SOBRE OS CUSTOS DA CONSTRUÇÃO
3 - SOBRE A FUNCIONALIDADE/ESPACIALIDADE
4 - SOBRE A FORMAÇÃO DO PREÇO FINAL

1 - SOBRE GENERALIDADES
1.1 - Definição de "custo"
1.2 - Definição de "preço"
1.3 - Definição de "valor"
1.4 - Definição de "barato"
1.5 - Definição de "caro"
1.6 - Definição de "econômico"
1.7 - Definição de "custo-benefêcio"
1.8 - Definição de habitação de "interesse social"

1.9 - Definição de habitação de "mercado"
1.10 - Definição de "infra-estrutura urbana"
1.11 - Definição de "equipamentos urbanos"
1.12 - Definição de "equipamentos comunitçrios"

2 - SOBRE OS CUSTOS DA CONSTRUÇÃO
2.1 - Custos diretos dos "materiais"
2.2 - Custos diretos da "mão-de-obra" - salçrios diretos; salçrios indiretos; encargos sociais
2.3 - Perdas e desperdêcios
2.4 - Custos indiretos dos "equipamentos" eletro-mecânicos
2.5 - Custos indiretos gerenciais, operacionais e de instalações do "canteiro de obras"
2.6 - Custos indiretos gerenciais, operacionais e de instalações da "sede da construtora"
2.7 - Custos indiretos da taxa de "lucro nominal do construtor"
2.8 - As TCPO - Tabelas de Composições de Preços para Orçamentos
2.9 - Indicadores de consumo dos serviços construtivos e de seus insumos (materiais, mão-de-obra, e equipamentos), por m2 de çrea construêda

3 - SOBRE A FUNCIONALIDADE/ESPACIALIDADE
3.1 - Custos unitçrios, tipológicos, da construção
3.2 - Áreas privativas "úmidas"
3.3 - Áreas privativas "secas"
3.4 - Áreas privativas de "circulação"
3.5 - Áreas privativas "complementares"
3.6 - Áreas privativas de "contato piso x parede"
3.7 - Áreas coletivas de "circulação"
3.8 - Áreas coletivas de "garagens"
3.9 - Áreas coletivas de "recreação"
3.10 - Áreas coletivas dos "serviços de apoio"

4 - SOBRE A FORMAÇÃO DO PREÇO FINAL
4.1 - Custos diretos da construção
4.2 - Custos indiretos do gerenciamento da construção
4.3 - Custos da terra urbanizada
4.4 - Custos dos projetos técnicos e espaciais
4.5 - Custos de planejamento, promoção e vendas
4.6 - Custos financeiros
4.7 - Taxa de lucro do incorporador
4.8 - Matriz probabilística de ocorrência média dos custos da produção habitacional na formação do seu preço final no mercado formal da cidade de São Paulo .

 

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