Os traços de
Abrahão |
|
Maria Cecília Loschiavo dos Santos é professora do grupo de disciplinas de Desenho Industrial da FAUUSP
|
É difícil exprimir publicamente a sensação de tristeza que paira sob a extensa comunidade de amigos, alunos, colegas, admiradores e a família de Abrahão Sanovicz. Sua obra não apresenta apenas os méritos acadêmicos, o compromisso da formação de muitas gerações de arquitetos ou o profissionalismo do arquiteto que projetou e inovou a arquitetura e o design do mobiliário com precisão e encanto. Sua obra é também o resultado de uma vida caracterizada pela coerência e generosidade infinita do amigo sempre pronto a acolher as idéias fraternalmente, os sentimentos, as diferenças e as utopias insaciáveis que impulsionam nossas ações. Nas conversas, quase sempre intermináveis, o sabor e a verve do interlocutor solícito, que conhecia a história e as estórias, capaz de evocar nomes e fatos esclarecedores do passado, tornando mais accessível a compreensão do próprio presente. Abrahão tinha o dom da troca da informação. Esse intercâmbio saudável produziu muitos frutos e alterou os rumos de trabalhos de inúmeras gerações. Em seus traços leves e fluídos sobre o papel, Abrahão criou uma sensação mágica e misteriosa, revelando-se uma de suas grandes paixões: o desenho. Com movimentos límpidos e lépidos, sobre o papel ou o quadro negro Abrahão exerceu em todos nós o fascínio pelo seu traço poderosamente criador. Ele desenhou o inexprimível. O singelo mural de seus desenhos montado pelos alunos da FAU, na última quinta feira, evidenciam a amplitude instigante do artista que soube juntar firmeza e suavidade, razão e sensibilidade. Conheci Abrahão em 1979, quando iniciava minha pesquisa sobre o design do móvel no Brasil, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Considero um privilégio ter privado de sua convivência amiga. Numa época em que a bibliografia sobre design era muito rarefeita, Abrahão abriu-me a rica possibilidade de adquirir uma visão mais complexa da história do design, a partir das motivações de seus protagonistas. Indiscutivelmente ele é um dos pioneiros do design em nosso país, participou do curso do Museu de Arte Moderna, viajou a Milão para estagiar com Marcelo Nizzoli, ampliando seus conhecimentos. Num tempo em que o design apresentava seus contornos pouco definidos, privilegiando-se seus aspectos estéticos, Abrahão acentuava os aspectos construtivos e projetuais, sem entretanto deixar de lado o papel socialmente transformador do projeto. Júlio Katinsky, bem ressaltou esta posição de Abrahão, em seu clássico texto sobre história do Desenho Industrial no Brasil, publicado pela Fundação Moreira Salles: "O projeto, em geral, é demonstração e exercício de soberania. É através dele que podemos contribuir para racionalizar os caminhos para o desenvolvimento, o que só poderá ser alcançado através do contínuo exercício profissional dos técnicos brasileiros. Este cuidado com o projeto nada mais é do que a visão histórica, com a devida antecipação, do desejo de equipar nossas cidades (edificação e urbanização), nossa paisagem (estradas, pontes, viadutos, planos regionais) com obras esteticamente belas, programática e tecnologicamente funcionais, para que nossas cidades e seus entornos se tornem agradáveis para o uso e a vida". A limpidez dos traços, a lucidez de posições, a generosidade de alma vai fazer falta no cotidiano da FAU. Por uma fatalidade histórica, durante o mes de abril a FAU e o Brasil sofreu a perda irreparável de alguns protagonistas da história do design, da arquitetura e da arte: Abrahão e Maurício Nogueira Lima, mas o poderoso legado que eles deixaram permanece entre nós. |
|
© ponto 1999 | www.ponto.org | 4 | extra | index | lista | cadastro | webmaster@ponto.org |