Marcelo Ferraz
Décio Otoni de Almeida, André Caram

Marcelo Ferraz é arquiteto e presidente do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi.

Fotos extraídas do livro "Arquitetura Rural na Serra da Mantiqueira", de Marcelo Ferraz.

Colaborou na entrevista o arquiteto Maurício Imenes

Gostaríamos que você nos falasse sobre o projeto de restauração do cento histórico de Salvador, visto que não se trata apenas de um trabalho de embelezamento arquitetônico, mas de cunho social e econômico.

O ideário desse projeto é pouco conhecido. O que a gente conhece está publicado num livro, só algumas formas resultantes de um projeto de arquitetura, ou seja a construção, restauração, um texto simples introdutório. Isso porque quando a gente estava trabalhando lá o objetivo não era estar divulgando as idéias e sim realizando um trabalho. Quando a Lina [Bo Bardi] foi chamada para equacionar a questão do centro histórico pelo prefeito de Salvador, o Lelé [João Filgueiras Lima] cuidava de toda a área de baixa renda de Salvador, encostas, lixo, transporte urbano, de modo que haviam dois pólos de atuação. A idéia foi fazer alguns projetos pontuais, que seriam todos eles projetos pilotos de atuação no centro histórico. A Casa do Benin, por exemplo, era uma das várias casas de representação de países ligados culturalmente à Bahia. Então viria a Casa de Angola, que agora está sendo feita, a Casa de Cuba, a Casa de Portugal, essa era uma maneira de ocupação de vários imóveis do centro histórico, que fazia parte do programa de uso, embaixadas culturais no centro histórico. A Casa do Olodum era um outro ponto forte de grupos organizados dentro do Pelourinho que podia participar de um programa de educação, sociabilização, ajuda comunitária e isso acontece com o Olodum hoje, eles têm várias casas, escola de música. A Ladeira da Misericórdia era o ponto principal, onde entrava a técnica de restauração.
Nós escolhemos a ladeira por ser um dos pontos mais antigos do centro histórico, justo na encosta que desce para a Cidade Baixa, e que estava abandonada, num estado de degradação total. Na Ladeira a gente queria dar uma amostra do que deveria ser o efeito dominó de restauração de toda a zona central, dos três mil imóveis.

Tem uma frase da Lina, "não vamos mexer em nada, mas vamos mexer em tudo".

Nós queríamos que aquela vida continuasse, aquela gente continuasse lá, em melhores condições, podendo desenvolver seu pequeno comércio, até pagando impostos, ou seja, sedimentando os pequenos comerciantes, isso sempre ligado a habitação. É lógico que algum êxodo iria haver, você restaurava algumas casas, mudava as famílias vizinhas para aquelas casas, era um processo de ir pulando de casa para casa. E para fazer uma restauração dessa escala, de três mil imóveis, fazia sentido pensar em um sistema de pré-moldados. Mais ainda, um sistema de pré-fabricação fazia sentido porque se deveria evitar obras pesadas dentro daquelas ladeiras e pequenos becos, entrar com um caminhão betoneira é sempre complicado. Era uma idéia de se ter uma obra limpa, em que dois homens podiam carregar a peça mais pesada de pré-moldado, nada ia pesar mais de oitenta quilos. Ali tinha o exemplo de uma casa com telhado, com um resto de assoalho, uma casa sem telhado, um terreno baldio, que tinha só uma ruína do século dezoito e um terreno baldio sem nada. Eram cinco imóveis, a gente tinha a situação em que se pegava o resto do telhado de uma casa, complementava as telhas e recuperava um telhado antigo. Na casa seguinte em que o telhado praticamente não existia, então a gente o derrubava e não refazia o telhado, havia a idéia de não estar falseando nada. Restaurar a fachada tudo bem porque a técnica que se usava a duzentos anos atrás ou cem anos é a mesma de hoje, a massa, a pintura a cal, a porta de madeira, a janela de madeira com o vidro. A construção ainda está nesse estágio e nós podemos lançar mão dessas técnicas para restaurar as fachadas. Poderíamos refazer os telhados, mas a gente queria também introduzir elementos novos, então fizemos os terraços que seriam as áreas coletivas para as lavanderias, jardins, que é uma das premissas do movimento moderno. Cada casarão daqueles seria dividido em três, quatro famílias, que usariam o térreo para o comércio, enfim tinha todo um programa sócio-econômico, que a Lina chamava de Plano Direcional, para atuação no centro histórico com o mínimo de expulsão de população.
Ali uma casa é sempre encostada na outra, uma segura a outra, se fica um buraco começam a cair as casas, então é fundamental se preencher os vazios e essa é uma questão que sempre foi discutida em Salvador, como preencher os vazios, "a falta dos dentes nas dentaduras", como eles dizem lá. Deve ser feita uma arquitetura moderna? Mas, o que é uma arquitetura moderna, uma agencia bancária horrorosa como chegou a ser feita nos anos setenta ou refaz um casarão imitando o antigo? Então a Lina teve a idéia que a tecnologia de suporte das casas também podia ser visual, deixar a tecnologia explícita, como nas igrejas antigas os contrafortes ficavam explícitos, seria um contraforte moderno, naquele momento em que havia a fabrica de argamassa armada do Lelé. As peças seriam feitas e enchidas com areia, e com o peso da areia - com a espessura das paredes - as casas seriam seguradas, ligadas com esse novo elemento, reconstruindo a muralha do casario. E agora eu queria fazer uma comparação entre essa idéia e o que foi feito hoje lá, a destruição do traçado urbanístico do centro histórico. Isso tem que ser criticado e combatido. O valor histórico e urbanístico está no traçado daquela parte da cidade, no traçado das ruas estreitas, a implantação da cidade na encosta, os "túneis" de casas, que emociona as pessoas que andam por ali. Quando há uma casa faltando, deve-se substituí-la com um elemento que recomponha esse buraco no traçado urbanístico. O que aconteceu lá, foi que além de deixarem os vazios, foram colocados portões, entradas para os fundos de lote. O fundo de lote era uma idéia do nosso projeto, onde podia ser feito uma grande área comum, reforçando a idéia de quintal das casas, onde havia goiabeiras, coqueiro, mato que crescia nas ruínas. Um quintal comum a várias casas do quarteirão, uma "superquadra de Brasília", lugar das crianças brincarem, sempre com caráter de fundo de lote. A experiência piloto nossa foi a Casa do Benin, o restaurante do Benin, no qual nós plantamos onze palmeiras, um oásis. E o que fizeram foi deixar essas casas que faltavam, abrindo escadarias, entradas e quando se chega lá percebe-se uma praça de shopping center, com vários pisos, vários níveis, lojinhas e o que é pior fizeram fachadas falsas no fundo das casas, originalmente elas tinham frente e fundo, nunca a frente era igual ao fundo. Então não se sabe mais se é o fundo ou a frente da construção o que se vê hoje e o traçado urbano acabou. Isso é um crime contra o patrimônio histórico. O mérito dessa restauração é que com ela os edifícios deixaram de cair, não há mais ruínas, incêndios e é nisso que eles se apoiam para justificá-la. Pronta para receber turistas, policiada, pronta para receber a classe alta. Ninguém se opôs já que o estado estava investindo muito dinheiro ali, mas com isso a população que lá morava foi expulsa totalmente, dava-se mil reais para cada família que o gastava em drogas ou então ia comprar um barraco na periferia. Enfim, socialmente essa gente faz parte daquela região e tem de se chegar com uma assistente social, com outra abordagem. Você não pode substituir um bairro onde morava muita gente só por lojinhas para turista.
É uma pena porque as formas de aço para essas peças pré-moldadas já estavam prontas, foram usadas só em poucas casas e depois foram abandonadas. A casa que não tinha assoalho, tinha só quatro paredes e o vazio, a gente entrava com uma laje de peças pré-moldadas, caixões de concreto, formando uma laje nervurada, que travava de novo essas paredes periféricas. Fazia-se vários níveis de laje, que vinham substituindo os assoalhos, uma técnica mais rápida, mais barata, mais durável, de mais fácil manutenção, imagina quanto custa um assoalho hoje. Era necessário uma operação de baixo custo para não elevar o preço do imóvel e inviabilizar a possibilidade de uma família de baixa renda morar lá. A peça para a escada permitia diferentes tamanhos de piso e espelho, permitindo escadas de diferentes inclinações que podiam ser usadas em qualquer casarão. Era uma família de peças - entre as escadas, as lajes, os contrafortes que são aquelas peças plissadas, as divisórias das casas - de oito, dez peças no máximo para tudo. Esse contraforte, que vinha substituindo essa casa que ruiu, era composto por duas placas plissadas com ligações entre si que não o deixa abrir, cheio de areia com terra na última camada para plantas. Quando tocavam nas casas, um deles passava por dentro da fachada principal da casa a uma distância de quinze centímetros dessa parede que eram preenchidos com concreto, uma maneira de fixar a fachada que queria cair. Já o Restaurante do Coaty foi a ocupação de um lote vazio. Havia várias situações na Ladeira da Misericórdia. É claro que cada caso deveria ser estudado, a gente tinha todos os imóveis do centro histórico levantados, planta por planta, de todos os pavimentos, cortes e a gente projetava casa por casa. Infelizmente por questões políticas, tudo parou, e ficou só a experiência piloto, uma pena porque seria uma economia diante do que foi feito lá, com escadarias de madeira e técnicas tradicionais. Seria uma experiência única, não só para o patrimônio brasileiro, mas como exemplo de recuperação de cidades. Nos países em desenvolvimento, cada vez menos vai haver dinheiro para isso.

Mudando de contexto, para o de uma cidade industrial, como foi a restauração do Teatro Polytheama?

Jundiaí é uma cidade riquíssima, uma cidade industrial, uma cidade com quinhentas industrias, terceira cidade em qualidade de vida no Brasil. Apesar disso o teatro foi recuperado com pouco dinheiro, quatro milhões de reais para um teatro com mil e duzentos lugares, que estava ruindo. No Polytheama mantivemos a postura de conservar somente o que é importante historicamente. Existem grupos preservacionistas que querem conservar tudo, isso é um risco. O Polytheama foi um teatro de mil e setecentos lugares, a gente acabou adotando mil e duzentos lugares para torná-lo mais confortável, moderno, de múltiplo uso, de acordo com as necessidades atuais e não tratá-lo como um bibelô. Modificações foram feitas na boca de cena, que tinha apenas sete metros, incompatível hoje com um teatro dessas proporções. A fachada teve de ser refeita, mas sem copiar sua feição original, o que seria falsear, ao mesmo tempo que as paredes laterais originais foram mantidas. Enfim, quem entrar no teatro sabe o que é velho e o que é novo, da restauração.

E o livro Arquitetura Rural na Serra da Mantiqueira, também pode ser considerado um trabalho de
conservação, como os arquitetos portugueses fizeram no início dos anos sessenta, com a publicação de Arquitetura Popular em Portugal, documentando construções, vilas, povoados fadados ao desaparecimento, que hoje não existem mais.

Eu tinha a idéia de fazer uma documentação sistemática, de ir para universidade, montar um grupo, fazer uma pesquisa. Mas não havia tempo, as pessoas olhavam as fotos e diziam que o livro estava pronto. Acabei fazendo um livro que não pretende abranger toda a região, esgotar um assunto. É uma visão impressionista, pessoal, uma leitura que poderia ser outra, mas no final o livro acabou tocando muito mais gente do que se fosse um trabalho universitário, talvez, confinado numa biblioteca universitária. Mas eu achava que esse livro seria, de certo modo, estimulante para os estudantes que poderiam
embarcar num projeto como aquele dos portugueses. Eu fiquei um pouco frustrado no princípio, pois apesar do livro ter vendido muito e já
estar na segunda edição, durante uns quatro meses foi vendido apenas um exemplar na banca de livros da FAUUSP, na escola que eu estudei, e de certa maneira o livro foi feito pensando nos estudantes da FAUUSP.

E a idéia não foi de fazer um livro para preservar um tipo de arquitetura que vai acabar mas sim de despertar os olhos para olhar e ver. Quem é a gente de lá, a construção, o clima, sem saudosismo.

Em relação a reforma de projetos modernos, como fica o caso do MASP?

O MASP é um museu muito importante, uma concepção totalmente nova de museu, ele é anterior a Nova Galeria Nacional do Mies em Berlim ou ao Whitney Museum, em Nova Iorque do Breuer.
Nessa reforma o museu ganhou um novo pavimento, embaixo do último piso, para reserva técnica, está sendo reparado o ar condicionado, mas eu entendo que o projeto tem aspectos que não podem ser alterados. A subdivisão da pinacoteca com paredes, inclusive tapando o caixilho sob o pretexto de que entrava muita luz, que poderia ser resolvido com persianas, e o abandono dos suportes de vidro transformou o edifício num museu cheio de salinhas, a velha concepção de museu, coisa do passado.

 

 

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