Economia no projeto de arquitetura (2)
“Crônicas marroquinas” - O barato, o caro, o valor, e o econômico
Khaled Ghoubar

Khaled Ghoubar é professor do departamento de Tecnologia da Arquitetura da FAUUSP.

 

Hassan, um comerciante marroquino negociava a compra de sandálias junto a um artesão, também marroquino. Hassan em tom categórico repetia exaltadamente "… muito caro, é muito caro!" E o artesão, com um ar de prudente indiferença repetia educadamente "- Sharif Hassan, este preço de 27 Dirrans por um par de sandálias, dessa qualidade, é barato!" No meio dessa negociação apareceu um outro cliente na oficina e o artesão pediu licença e foi atendê-lo. Nesse intervalo de tempo o Hassan e o artesão refizeram mentalmente as suas contas e ao voltarem às negociações cada um deles cedeu um pouco e fecharam a transação em 25 Dirrans. E o Hassan saiu dali convencido que fez um bom negócio pois as sandálias estavam na realidade a um preço baixo, em relação ao preço pelo qual ele vai poder vendê-las, deixando para trás o artesão também convencido que as tinha vendido por um preço alto, em relação ao custo que ele vai ter em reproduzi-las.

O Hassan, ao voltar para a sua loja, colocou as sandálias de uma forma que elas ganhassem mais evidência, e assim elas ficaram próximas aos vestidos e bijouterias de preços mais caros, no canto mais iluminado e de maior visibilidade para quem entrasse na loja.

Não tardou para um senhor entrar acompanhado de uma jovem, filha sua, para lhe comprar uma sandália. Como se tratava de uma sandália para uma ocasião especial os seus olhares atentos foram direto para as novas sandçlias, e o senhor pergunta ê- Qual é o preço?, e o Hassan responde "- Vão lhe custar 50 Dirrans..."- "… muito caro!" exclama o senhor. "- … muito barato... veja o acabamento, a qualidade do desenho e do tecido, é a minha melhor mercadoria, e eu tenho poucas peças, poderia pedir mais por elas!" retruca Hassan. Com um disfarçado desinteresse o senhor afasta sua filha das sandálias e lhe pergunta em tom baixo se gostou delas, e ela responde que sim "que elas valem esses 50 Dirrans", pois ela não tinha visto outras sandálias mais bonitas e como não tinham mais tempo para procurar por outras ela pediu ao pai que fechasse rapidamente a compra. Mas esse senhor não iria entregar o seu dinheiro sem antes encenar o seu papel de vítima resistente e pediu que o Hassan abaixasse o preço para 30 Dirrans, que sob muitos urros, olhos esbugalhados e braços agitados as negociações acordaram o preço em 45 Dirrans.

As sandálias não foram nem caras, nem baratas, foram econômicas pois o seu custo foi analisado sob a ótica dos benefícios. Não soubessem da qualidade exigida da mercadoria que procuravam, nem o quanto estavam dispostos a pagar por ela, poderiam se enganar ou serem enganados ao adquirir uma mercadoria barata de baixo valor, ou adquirir uma outra cara de alto valor suplementar e acessório.

E o senhor foi para a sua casa sabendo que estão cobrando 50 Dirrans por uma boa sandália, e o Hassan fechou a loja no final do dia sabendo que estão pagando até 45 Dirrans por uma boa sandália. Os dois cumpriram satisfatoriamente os seus papéis, sem os vícios dos oligopólio e cartéis, como agentes de uma parte das relações comerciais que regulam os mercados concorrenciais.

Sabendo ou não, o artesão, o Hassan, e o senhor com a sua filha (respectivamente produtor, distribuidor e consumidores), empregaram os conceitos de :
-preço (remuneração obtida pela venda de um bem) ;
-custo (gastos necessários para a obtenção de um bem) ;
-valor (as qualidades exigidas ou existentes num bem) ;
-econômico (uma positiva relação custo/benefício = mais benefícios e menos custos) ;
-barato (o menor gasto, descolado de valor necessçrio) ; e
-caro (o maior gasto, descolado de valor suficiente).

Explicitando melhor : para o artesão, o preço de venda que ele obteve pelas sandálias foi econômico, pois com essa remuneração ele vai continuar a produzir as sandálias, cobrindo os seus custos de produção e lhe propiciando uma margem de lucro que ele poderá transformar em aumento de capital para a oficina, ou consumir em bens para a melhoria da sua qualidade de vida ; também para o Hassan o negócio foi econômico pois ele conseguiu vender as sandálias por um preço superior ao que lhe custou, e com isso ele poderá aumentar o estoque da loja ou aumentar o seu consumo pessoal.

Para o produtor e o distribuidor, o estabelecimento da quantia em dinheiro correspondente a qualquer mercadoria tem uma lógica matemática (de representação social maquiada, como num jogo de cartas que tem regras como também tem blefes) que é a busca de alguma vantagem na transação entendida pelos agentes como um simples elo de uma cadeia interminável e imemoriável de transações sucessivas. O preço e o custo mantém entre si relações determinantes recíprocas, isto é, conhecidos todos os custos de produção e o lucro desejado define-se o preço de venda, mas também é verdade que sabido o preço que se pode apurar na venda ele define os limites dos custos.

Mas para o consumidor não interessam, de modo algum, a sistemática das relações existentes organicamente entre os produtores e distribuidores, que envolvem regularmente um conjunto muito grande de agentes. Só lhe interessa as relações terminais dessa cadeia que são as suas relações de consumidor diante do distribuidor varejista. Às relações custos X preços precisará ser somada, da forma mais clara possêvel, o conceito de valor derivado do conceito de econômico. Pois é verdade que antes de analisar o preço da mercadoria e das suas reais condições de pagar por ela, o consumidor lhe atribui um grau de valor (de utilidade, ou de troca) de que ela estaria impregnada. Esse valor é definido pela satisfação das exigências humanas (físico-fisiológicas, funcionais e psicológicas) culturalmente naturais ou artificialmente implantadas pela mídia comercial. Aqui ao valor ou sobre-valor corresponderá um preço ou sobre-preço. As modernas técnicas de mercado existem exatamente para a indispensável mediação dessas relações.

Analisados dessa forma, ao artesão interessa aumentar os preços e reduzir seus custos, e da mesma forma o Hassan. Já para o senhor bastaria reduzir os custos, enquanto que para a sua filha o fundamental é a mercadoria ter valor. Se essa jovem não se interessar pela mercadoria o sistema de produção ficará parado, por extensão desse seu desinteresse pela compra. E para ela e seu pai o custo, o preço e o valor podem ser entendidos como termos análogos, que não lhes fará diferença alguma. Mas para o artesão e para o Hassan essa confusão entre os termos pode ser fatal.

Distinguir é fundamental para o controle e o planejamento.

Série "Economia no projeto de arquitetura", estruturação geral dos conceitos fundamentais:

TEMÁRIO
1 - SOBRE GENERALIDADES
2 - SOBRE OS CUSTOS DA CONSTRUÇÃO
3 - SOBRE A FUNCIONALIDADE/ESPACIALIDADE
4 - SOBRE A FORMAÇÃO DO PREÇO FINAL

1 - SOBRE GENERALIDADES
1.1 - Definição de "custo"
1.2 - Definição de "preço"
1.3 - Definição de "valor"
1.4 - Definição de "barato"
1.5 - Definição de "caro"
1.6 - Definição de "econômico"
1.7 - Definição de "custo-benefêcio"
1.8 - Definição de habitação de "interesse social"

1.9 - Definição de habitação de "mercado"
1.10 - Definição de "infra-estrutura urbana"
1.11 - Definição de "equipamentos urbanos"
1.12 - Definição de "equipamentos comunitçrios"

2 - SOBRE OS CUSTOS DA CONSTRUÇÃO
2.1 - Custos diretos dos "materiais"
2.2 - Custos diretos da "mão-de-obra" - salçrios diretos; salçrios indiretos; encargos sociais
2.3 - Perdas e desperdêcios
2.4 - Custos indiretos dos "equipamentos" eletro-mecânicos
2.5 - Custos indiretos gerenciais, operacionais e de instalações do "canteiro de obras"
2.6 - Custos indiretos gerenciais, operacionais e de instalações da "sede da construtora"
2.7 - Custos indiretos da taxa de "lucro nominal do construtor"
2.8 - As TCPO - Tabelas de Composições de Preços para Orçamentos
2.9 - Indicadores de consumo dos serviços construtivos e de seus insumos (materiais, mão-de-obra, e equipamentos), por m2 de çrea construêda

3 - SOBRE A FUNCIONALIDADE/ESPACIALIDADE
3.1 - Custos unitçrios, tipológicos, da construção
3.2 - Áreas privativas "úmidas"
3.3 - Áreas privativas "secas"
3.4 - Áreas privativas de "circulação"
3.5 - Áreas privativas "complementares"
3.6 - Áreas privativas de "contato piso x parede"
3.7 - Áreas coletivas de "circulação"
3.8 - Áreas coletivas de "garagens"
3.9 - Áreas coletivas de "recreação"
3.10 - Áreas coletivas dos "serviços de apoio"

4 - SOBRE A FORMAÇÃO DO PREÇO FINAL
4.1 - Custos diretos da construção
4.2 - Custos indiretos do gerenciamento da construção
4.3 - Custos da terra urbanizada
4.4 - Custos dos projetos técnicos e espaciais
4.5 - Custos de planejamento, promoção e vendas
4.6 - Custos financeiros
4.7 - Taxa de lucro do incorporador
4.8 - Matriz probabilística de ocorrência média dos custos da produção habitacional na formação do seu preço final no mercado formal da cidade de São Paulo .

 

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