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Marta Dora
Grostein |
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Marta Dora Grostein é professora titular do Departamento de História da Arquitetura da FAUUSP |
Historicamente, como se deu a ocupação dos fundos de vale na cidade de São Paulo ? Quando observamos a
estrutura da região metropolitana hoje, percebemos
que a maior parte dos fundos de vale são ocupados por
avenidas. A primeira pergunta que podemos fazer é
como o espaço foi se estruturando desse modo e quais
as consequências que esse tipo de
situação traz para a metrópole hoje. O
que podemos observar olhando para a história é
que a cidade de São Paulo possui, na verdade, apenas
um plano viário definido, que foi o plano de avenidas
proposto pelo Prestes Maia na década de 30. Esse
plano reforçou uma estruturação
radio-concêntrica do município, ou seja, uma
estrutura onde você tem um centro e as avenidas
radiais convergem para esse centro, além de algumas
avenidas perimetrais que fariam as conexões entre
bairros. A maior parte dessas radiais já eram
propostas naquele momento como fundos de vale ocupados por
avenidas. Nós temos marcadamente a Nove de Julho, que
tinha um córrego que foi saneado e construída
a avenida em cima, o mesmo podemos dizer da Av. 23 de Maio,
que também converge para a área central, e
assim como essas várias outras avenidas foram sendo
construídas, principalmente em fundos de vale. Desde
o plano de avenidas a prática de ocupar os fundos de
vale com vias já era uma marca da maneira como o
sistema viário ia sendo estruturado na cidade de
São Paulo. Bem, para esse tipo de
solução urbanística era
necessário sanear o vale, ou seja, drenar os
córregos e construir infra-estruturas para a
captação das águas e para criar um
percurso artificial das águas da chuva que
desembocariam, no caso, nos grandes rios, no Tietê e
no Pinheiros. Se num primeiro momento o impacto desse tipo
de solução não teve resultantes
catastróficas do ponto de vista de desastres
ambientais associados às praticas de
ocupação de fundos de vales, na medida em que
a urbanização foi se intensificando, outros
elementos somados à ocupação do fundo
de vales com avenidas foram criando situações
desfavoráveis para a drenagem urbana, como por
exemplo uma grande impermeabilização do
solo. Porque existia essa prática de um modo tão uniforme e independente da situação espacial do território onde se quer garantir uma maior acessibilidade ou seja, a abertura de uma nova avenida? Em meados dos anos 70 a política nacional de saneamento propôs linhas específias de financiamento para as metrópoles enfrentarem a questão do saneamento básico na cidade. A grande meta era prover as grandes metrópoles com água encanada, com drenagem urbana e com rede de esgoto. A meta da oferta de água encanada e água tratada foi muito bem cumprida durante essas últimas décadas. A facilidade de acesso a financiamento para a área de saneamento fez com que a municipalidade, no caso de São Paulo, utilizasse como estratégia para a abertura de vias sempre associá-las à obras de saneamento. Nós tivemos então uma multiplicação de propostas de avenidas de fundos de vale que foram sendo abertas de modo assistemático, sem nenhum plano de conjunto, e sem nenhuma diferenciação em termos de projeto, ou de solução de projeto, ou de reflexão em torno do que significa abrir vias metropolitanas, as diferentes possibilidades de projeto que isso traz, ou ainda as diferentes possibilidades de ocupação de fundo de vale. Quase que definindo o destino dos fundos de vale apenas como leito carroçável, quando existe a possibilidade ou a necessidade de se ter uma consciência muito grande dessa questão. A drenagem urbana é um problema gravíssimo a ser enfrentado na metrópole e questões como a conjugação de áreas públicas livres e abertas em fundos de vale ou em áreas específicas da cidade, a necessidade de se ter áreas mais permeabilizadas ou um tratamento mais diferenciado para a pavimentação. Então pensar pavimentação, ocupação de lotes, construção de praças e áreas públicas associadas à necessidade de prever soluções para a drenagem de águas pluviais, enfim... Existe alguma data aproximada a partir da qual essa consciência foi se desenvolvendo? Eu não acho que existe a consciência. Existem algumas pesquisas que temos feito tentando entender esse processo de estruturação de espaço, onde podemos identificar essas questões. Nos meados dos anos 70, quando a estratégia do poder público foi de associar indiscriminadamente obras de canalização com obras de pavimentação, foi reforçada uma prática que já vinha sendo feita há algum tempo na prefeitura e que continua até hoje, sendo um modo muito restrito de se entender o que é uma avenida urbana, e as consequências dos projetos implantados na cidade. Foram adotadas determinadas linhas de projeto que tinham como variáveis apenas o escoamento de automóveis e a canalização de córregos, sem associar essa solução a outras questões como por exemplo, que tipo de tratamento pode ser utilizado para melhorar as condições de absorção do solo, para criar áreas de contenção, e para evitar os problemas decorrentes do tipo de projeto que foi sendo feito. O que acontece quando se faz uma canalização e quando você pavimenta toda a via? Você está aumentando a velocidade com que as águas chegam no Tietê e no Pinheiros. E dependendo da intensidade da chuva a enchente é inevitável. Porque você não tem áreas de retenção da água... Então as avenidas funcionariam como calhas... Elas são calhas condutoras que aumentam a velocidade da água tanto dentro da canalização feita quanto no próprio leito, situação que piora se os bueiros estão entupidos, e se existe lixo dentro da canalização, que muitas vezes é jogado e abandonado nas ruas, e vai para os córregos quando chove. Somado ao fato que nós tivemos nas últimas décadas uma multiplicação enorme no número de favelas na cidade de São Paulo. Grande parte das favelas estão localizadas sobre córregos, o que também acarreta uma acumulação de detritos nos córregos, pelas próprias condições de sobrevivência de populações que estão em áreas onde não tem coleta de lixo, canalização de esgoto, de água, quemuitas vezes correm a céu aberto nas próprias calçadas vão diretamente para os córregos. Com a urbanização nós temos um aumento da quantidade de detritos, temos um aumento na quantidade de água servidas, e um aumento da velocidade de escoamento desses elementos pra dentro dos córregos e dos rios. Então as enchentes hoje em São Paulo não são apenas acidentes, elas são consequências de opções que foram feitas nas ultimas décadas nos processos de expansão e de construção da metrópole. No primeiro plano foram feitas opções conscientes? Claro que sim, se resolveu um problema que era o escoamento de carros, de veículos, aumentar o sistema víario de modo muito imediatista. Por que imediatista? Porque quando se constrói uma avenida no fundo de vale, você reduz o número de desapropriações necessárias para abrir uma via, e o custo fica menor. Otimiza-se o custo, mas cria-se problemas ambientais que frequentemente não são levadas em conta no cômputo do orçamento de uma obra, e que cada vez mais a sociedade percebe que o custo ambiental tem que ser incorporado nesse orçamento e as soluções das questões ambientais tem que ser incorporados nos projetos que você vai executar na cidade. Portanto uma avenida é muito mais que um leito carroçável. Ela é um equipamento urbano, ela é um espaço de convivência, ela define o perfil dsa relação entre automóveis e pedestres, ela tem uma série de condicionantes que não apenas ser uma estrada, uma rodovia, um leito para circulação de veículos. Ela dá a personalidade de determinadas cidades, a maneira como você vai usar a cidade, portanto a concepção de projetos urbanos é muito mais ampla do que apenas condicionar o deslocamento de veículos. Sendo inviável a realocação de uma avenida, o que poderia ser feito para reduzir a incidencia de enchentes? A engenharia urbana tem se debruçado sobre essa questão, e para enfrentar os problemas das enchentes, existe o que os engenheiros definem como soluções estruturais, que se referem a obras pesadas, ou soluções não estruturais, que se referem a outros componentes de controle do uso e ocupação do solo que influenciam na drenagem urbana. Por exemplo, a coleta de lixo... Coleta de lixo, impedir a ocupação total dos terrenos sempre preservando determinadas taxas de ocupação do terreno para drenagem, e numa escala mais ampla criar áreas de contenção das águas, como por exemplo os piscinões, o piscinão do Pacaembu tem se mostrado uma solução bem sucedida para a diminuição das enchentes na av. Pacaembu. Praticamente as enchentes pararam depois da construção do piscinão. E estão sendo pensados vários piscinões para a cidade de São Paulo. A questão é que num momento de poucos recursos nós temos que ter prioridades de obras, precisamos ver quais são as obras prioritárias na cidade para enfrentar essas enchentes catastróficas que nós estamos vivendo nesse momento. Quer dizer que além das áreas novas de expansão, ou em transformação, mais além dos rios como mencionei anteriormente, onde está concentrada a maior porcentagem de novas avenidas de fundo de vale, nós temos também o envelhechimento da infra-estrutura da cidade em regiões como a área central, onde a drenagem e as canalizações (como as da av. Nove de Julho) já estão com seu dimensionamento inferior à necessidade daquela região. A Av. Nove de Julho e a área da Paulista não são regiões de urbanização recente, mas são o ponto de escoamento de águas que vem de locais muito além desses limites mencionados. Os problemas do ambiente urbano muitas vezes não tem origem no ponto em que eles aparecem como problema, mas eles tem origem em áreas que vão além, muitas vezes em áreas muito grandes. O córrego Pirajussara é um exemplo. Ele cruza o município de São Paulo, mas começa lá no Taboão, então se não se resolver dede o Taboão até a região da Cidade Universitária, haverá problemas com o córrego Pirajussara. Existe algum aspecto a ser salientado quanto à essas questões? Eu acho que exitem vários aspectos, mas o que eu gostaria nesse momento é evidenciar como as opções de construções das infra-estruturas urbanas influenciam, definitivamente, no uso do território e também como a não aplicação dos instrumentos de controle urbanístico, como a legislação de uso e ocupação do solo, tem influência extremamente grave nos problemas ambientais que a cidade vive hoje. A expansão ilegal que predominou nas áreas de crescimento da cidade, nas periferias urbanas, onde temos loteamentos ilegais, clendestinos, e a falta de projeto para a ampliação do sistema viário da cidade nessas áreas também estrá acarretando problemas muito sérios. O problema das enchentes aparece em escalas muito grandes, hoje, nas regiões das marginais do Tietê e do Pinheiros, que é onde desembocam essas grandes avenidas construidas no decorrer dos anos 80, onde está o problema da falta de projeto urbano mais definido. Nas áreas de expansão das periferias, também multiplicam os problemas das enchentes, espalhando-os pelo conjunto da região metrpolitana, tendo a ver muito com o padrão de expansão da cidade, com o modo como o espaço foi ocupado. E qual seria o papel do arquiteto nesse processo? As possibilidades do
papel do arquiteto estão em todas as instâncias
onde existe intervenção no espaço
urbano. Agora, o arquiteto que não compreende a
dinâmica urbana presente hoje na
estruturação da metrópole, tanto nas
áreas em transformação quanto nas
áreas em expansão, um arquiteto que não
conheça as questões estruturais, da
formação e da organização do
espaço dificilmente fará um projeto que
enfrente de fato as questões estruturais que a cidade
vive hoje. Então, não basta você saber
resolver tecnicamente a abertura de uma via se você
não souber qual a melhor solução para
um determinado espaço, quais as pressões
aquele espaço recebe e em que situação
ele está inserido. Não adianta você
desenhar uma excelente avenida se você não
souber resolver o problema do escoamento das águas,
se você não tiver um pensamento mais amplo
sobre soluções de infra-estrutura urbana que
resolvam por exemplo a contenção de
águas, antes delas chegarem ao seu desembocadouro. Se
você vai construir um edifício em
regiões extremamente acidentadas, como o Morumbi, por
exemplo, ou se você vai fazer um comdomínio e
consegue resolver o problema do condomínio, o que
acontece com o terreno de trás que vai receber toda a
água, se você por acaso tiver pavimentado 100%
do solo daquele lote que voce vai estar trabalhando? Uma
coisa são os jardins que aparecem na
superfície de um edifício, mas aquilo
não significa que você está resolvendo o
problema da absorção da água, porque
por baixo tem três, quatro andares de subsolo. O
problema das águas ali continua sendo um problema
grave. Você tem jardins ornamentais, mas você
não tem a função que um jardim ou um
parque pode ter, podendo absorver diretamente grandes
quantidades de águas da chuva. Dada a nossa realidade, qual seria a abertura dada pela sociedade em geral à uma discussão como essa? Eu acho que o espaço existe, o que é preciso é que a sociedade se coloque e escolha esses temas como importantes. Do ponto de vista de uma escola de arquitetura, ou dos alunos de uma escola de arquitetura eu acho que existe uma responsabilidade conjunta entre professores e alunos de escolher temas e questões que sejam de fato relevantes do ponto de vista social, econômico, político... eu acho que na sociedade existe espaço, o que é preciso é saber formular as questões certas, fazer escolhas de prioridades.
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