Economia no projeto de arquitetura (1)
“Crônicas marroquinas” - Custo, preço e valor
Khaled Ghoubar

Khaled Ghoubar é professor do departamento de Tecnologia da Arquitetura da FAUUSP.

 

Conta-se que os comerciantes marroquinos - povo árabe do extremo oeste (m’aaghreb) do norte da África - são os mais persistentes de todos os comerciantes do mediterrâneo, que se não puderem lhe vender alguma coisa tentarão pelo menos fazer alguma troca pela sua mochila, seu casaco, seu relógio ou qualquer outro objeto que tenha um bom valor de troca nesse mercado. Em suma, eles olham para você como uma das peças do mercado móvel que é o mundo todo para o comerciante.

Certa manhã ao abrir o “baazar” um comerciante tradicional atende um cliente de aspecto pouco comum, um senhor de feições árabes vestido com roupas ocidentais que olha, atenta e interessadamente, um rico vestido feminino adamascado, enfeitado com contas coloridas e pequenos espelhos, e bordado com fios dourados. No contexto desse “baazar” o vestido era dos mais finos, que custou o equivalente a 10 dólares americanos . O senhor pergunta pelo preço e o comerciante com um ar de indisfarçável rotina leva alguns segundos para lhe dar o preço de 30 dólares. E esse senhor, sem discutir, aceita o preço e fecha a compra. E o comerciante, com um ar de indisfarçável preocupação pega o vestido e muito lentamente começa a arrumá-lo dentro de um embrulho, como se esperasse alguma outra ordem ou manifestação do comprador. Como este não se manifestou mais, pagou a conta, pegou o embrulho e foi embora.

Horas mais tarde um outro senhor de feições semelhantes se interessa por um vestido semelhante e o comerciante lhe pede 35 dólares, o senhor também o compra sem comentar nada.

No começo da tarde um outro senhor, com as mesmas feições se interessa pelo mesmo modelo de vestido mas não aceita o preço de 35 dólares e propõe 15 dólares. O comerciante não aceita vendê-lo por menos que 30 dólares, e o comprador vai embora sem fazer negócio. E assim se passa o dia com o comerciante insistindo nos 30 dólares e não fechando mais negócio algum com os vestidos.

No dia seguinte o comerciante abre o “baazar” pedindo 25 dólares pelo vestido, e o primeiro cliente que lhe propõe somente 15 dólares. E os dois começam um alegre e exaltado jogo de blefes até concordarem com o preço de 20 dólares. E durante todo o dia ele consegue vender todos os vestidos por volta dos 20 dólares cada um. Essa margem de 100% acabou sendo a taxa identificada como aceitável pelos dois agentes da transação comercial, naquele momento.

É por fatos como esses que o folclore comercial marroquino diz que “comprador que não pechincha não é comprador, e dá azar”. Porque se o preço não for negociado não há “mercado”. Portanto o comprador ali tem uma “obrigação social e cultural” de forçar a queda do preço até o limite aceitável pelo vendedor, pois o vendedor simetricamente tentará elevar o preço até o limite aceitável pelo comprador. Nesse cenário esses dois atores definem o “preço de mercado”.

Não foi por outra razão que o vendedor perdeu a “noção dos limites do mercado” quando começou o dia vendendo para dois compradores que não se comportaram regularmente, levando o vendedor a imaginar que o preço estava baixo, já que não houve pechincha. E esses dois senhores lhe deram azar ao atrapalharem todos os demais negócios do dia.

O vendedor, com a sua estrutura de “custos”, tem que vender os vestidos com uma margem de 100% para com isso pagar o aluguel, as taxas, os empregados, o capital de giro, seu pró-labore, e ainda sobrar um lucro para investimentos ou para cobrir períodos de faturamento insuficiente para cobrir as despesas básicas. Portanto o vendedor arbitra o “preço” de forma objetiva a partir da sua estrutura de custos.

Mas o comprador não está vendo o vestido só como uma peça utilitária, de aspectos objetivos (tamanho, cor, modelo, durabilidade, originalidade, etc.). O comprador imagina o corpo da mulher a quem esse vestido vai servir, e sua imaginação pode ser muito gentil e ao seus olhos esse vestido tem muito mais valor que os 30 dólares, ele tem valor emocional. O vestido foi humanizado, não é mais um vestido qualquer, ele ganhou personalidade e singularidade. Ganhou portanto “valor”. Essa é a diferença fundamental que se processa sobre o “divisor de águas” que é o balcão de vendas : para o vendedor “custo” se transforma em “preço”, e para o comprador “preço” se transforma em “valor”.

Série "Economia no projeto de arquitetura", estruturação geral dos conceitos fundamentais:

TEMÁRIO
1 - SOBRE GENERALIDADES
2 - SOBRE OS CUSTOS DA CONSTRUÇÃO
3 - SOBRE A FUNCIONALIDADE/ESPACIALIDADE
4 - SOBRE A FORMAÇÃO DO PREÇO FINAL

1 - SOBRE GENERALIDADES
1.1 - Definição de "custo"
1.2 - Definição de "preço"
1.3 - Definição de "valor"
1.4 - Definição de "barato"
1.5 - Definição de "caro"
1.6 - Definição de "econômico"
1.7 - Definição de "custo-benefêcio"
1.8 - Definição de habitação de "interesse social"

1.9 - Definição de habitação de "mercado"
1.10 - Definição de "infra-estrutura urbana"
1.11 - Definição de "equipamentos urbanos"
1.12 - Definição de "equipamentos comunitçrios"

2 - SOBRE OS CUSTOS DA CONSTRUÇÃO
2.1 - Custos diretos dos "materiais"
2.2 - Custos diretos da "mão-de-obra" - salçrios diretos; salçrios indiretos; encargos sociais
2.3 - Perdas e desperdêcios
2.4 - Custos indiretos dos "equipamentos" eletro-mecânicos
2.5 - Custos indiretos gerenciais, operacionais e de instalações do "canteiro de obras"
2.6 - Custos indiretos gerenciais, operacionais e de instalações da "sede da construtora"
2.7 - Custos indiretos da taxa de "lucro nominal do construtor"
2.8 - As TCPO - Tabelas de Composições de Preços para Orçamentos
2.9 - Indicadores de consumo dos serviços construtivos e de seus insumos (materiais, mão-de-obra, e equipamentos), por m2 de çrea construêda

3 - SOBRE A FUNCIONALIDADE/ESPACIALIDADE
3.1 - Custos unitçrios, tipológicos, da construção
3.2 - Áreas privativas "úmidas"
3.3 - Áreas privativas "secas"
3.4 - Áreas privativas de "circulação"
3.5 - Áreas privativas "complementares"
3.6 - Áreas privativas de "contato piso x parede"
3.7 - Áreas coletivas de "circulação"
3.8 - Áreas coletivas de "garagens"
3.9 - Áreas coletivas de "recreação"
3.10 - Áreas coletivas dos "serviços de apoio"

4 - SOBRE A FORMAÇÃO DO PREÇO FINAL
4.1 - Custos diretos da construção
4.2 - Custos indiretos do gerenciamento da construção
4.3 - Custos da terra urbanizada
4.4 - Custos dos projetos técnicos e espaciais
4.5 - Custos de planejamento, promoção e vendas
4.6 - Custos financeiros
4.7 - Taxa de lucro do incorporador
4.8 - Matriz probabilística de ocorrência média dos custos da produção habitacional na formação do seu preço final no mercado formal da cidade de São Paulo .

 

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