|
|
||
|
Desmemória
das Metrópoles: apagando os rastros do trabalho de
construir |
||
|
Maria Lucia Caira Gitahy é professora do Departamento de Historia da FAU-USP e autora, entre outros, de Ventos do Mar. Trabalhadores do Porto, Movimento Operario e Cultura Urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo, Ed. UNESP/Município de Santos, 1992. |
Dentro do painel "Desmemória Brasileira: lugares do esquecimento, histórias perdidas", este trabalho explorará a idéia de que não apenas em lugares e tempos distantes há esquecimento. Soterradas nas cidades mais ativas, nos centros mais dinâmicos, a história dos trabalhadores da construção civil brasileira tem sofrido um silenciamento secular. Assim como foi destruída a fisionomia particular que as cidades brasileiras adquiriram durante a virada do século XIX para o XX, a história destes trabalhadores também foi esquecida. Neste trabalho, procurarei recuperar a situação dos trabalhadores da constução civil naquele momento, procurando compreendê-la no seu contexto mais geral. No último quartel do século passado, com a assim chamada Segunda Revolução Industrial, o capitalismo mundial sofreu uma profunda transformação. O Brasil, que não desejava ficar à margem da economia mundial, teve que enfrentar grandes desafios para definir sua posição na então "nova" divisão internacional do trabalho. Entre os maiores, estavam dois: enfrentar a questão do trabalho escravo e promover a construção de uma infraestrutura de transportes, energética e urbana capaz de melhor conectar uma crescente produção cafeeira de exportação ao mercado mundial e ao mesmo tempo, reafirmar e redefinir a posição do país na então "nova" divisão internacional do trabalho. Os grandes marcos da Abolição da Escravidão e da República, criaram o quadro político necessário a estas redefinições. Com o advento do período republicano, intensifica-se a formação de um mercado de trabalho livre e o esforço construtivo destinado à produção de um território organizado dentro dos "modernos" referenciais sócio-econômicos e culturais que então impunham-se, cresce e aprofunda-se. Associados à fixação do imigrante e à transformação das cidades, os programas de saneamento foram uma prioridade no início da República. Foram construídos serviços de abastecimento de águas, canais de drenagem e de esgotos. A instalação das hidrelétricas foi contemporânea a dos grandes centros mundiais (SZMRECSÁNYI,1986). Construir uma infraestrutura moderna, requalificando as relações entre cidade e campo e os espaços produtivos no interior de ambos, assim como o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho, não era apenas uma tarefa de construção física mas também de construção de instituições sociais voltadas para a busca intelectual e para a redefinição das relações sociais. A origem das primeiras escolas de Engenharia no Brasil faz parte deste processo. A Escola Politécnica do Rio, proveniente de sucessivas reorganizações da Academia Real Militar, é criada em 1874 (CUNHA, 1980), a Escola de Minas de Ouro Preto é fundada em 1875 (CARVALHO, 1978), a Escola Politécnica de São Paulo é fundada em 1894 e a Escola de Engenharia Mackenzie, em 1896 (SANTOS, 1985). Com isto inicia-se aqui, tanto o ensino superior da Engenharia, Arquitetura e Urbanismo, quanto a pesquisa ligada aos materiais de construção. O esforço de diversificação social era abrangente: era preciso criar os quadros superiores, os "oficiais" intermediários e um grande "exército" do trabalho, capaz de construir uma forma brasileira de "cidade moderna". A definição dos requisitos de uma qualificação do trabalhador era uma preocupação recorrente da elite naqueles anos e concretizou-se, não apenas nos cursos ministrados nas Escolas de Engenharia, mas também através dos Liceus de Artes e Ofícios e outras escolas profissionais destinadas a formar estes "quadros intermediários" de um grande "exército do trabalho". A formação de um mercado imobiliário inicia-se já na segunda metade do século passado. Mas no final do mesmo, com o grande impulso construtivo apontado aqui, ocorre paralelamente o estabelecimento da indústria da construção civil em bases empresariais. A constituição deste ramo industrial é lenta e complexa, sendo que cada um de seus setores tem seu próprio ritmo de formação. Ao mesmo tempo, formam-se paulatinamente o mercado de locações, o de terrenos, o de moradias (XAVIER PEREIRA, 1990). Estes processos mais amplos, aqui indicados sumariamente, naquilo em que dizem respeito mais de perto à formação de um grupo operário específico, os trabalhadores da construção civil, tiveram características próprias nas diferentes cidades do Brasil. Basta lembrar que o engenheiro e sanitarista Saturnino de Brito elaborou planos urbanísticos gerais para cerca de 40 cidades brasileiras no período, entre elas a cidade de Santos, em que assumiu a Comissão do Saneamento. Nestas cidades, reconstruiu-se o espaço público, disciplinou-se o padrão do assentamento, prescreveram-se áreas diferentes para diferentes funções, separaram-se os bairros proletários dos mais refinados e dos da "classe média". É interessante observar que estas mudanças sócio-econômicas, vividas desde o último quartel do século passado, só são elaboradas cultural e politicamente no momento seguinte. A belle époque assiste então a um amplo processo de construção de instituições que atravessa a sociedade tanto de cima para baixo, quanto de baixo para cima. São estas instituições que vão permitir à sociedade reorganizar-se e reproduzir-se, atualizando as transformações maiores que estava atravessando culturalmente e enfim equipar-se para enfrentar o século XX. Pois foi nestas cidades em transformação que o movimento operário nasceu e adquiriu voz, deixando sua marca característica na própria cultura urbana do período. Os trabalhadores da construção civil ocuparam um papel crucial tanto nestas cidades, quanto neste movimento. Sua atuação, portanto, é entendida aqui neste contexto mais amplo de formação da classe. Para discutir as condições de trabalho dos trabalhadores da construção durante as últimas décadas do século passado e o início deste, é preciso acompanhar a diversificação das atividades construtivas que levarão à constituição da construção civil como um ramo industrial distinto, com ao menos três subsetores interligados: o que chamaremos aqui (com um forte risco de anacronismo) de "construção pesada", materiais de construção e edificações. As condições de trabalho no que hoje seria chamado de "construção pesada" não poderiam ser mais inóspitas. Como aponta HARDMAN (1988:127), "... nas condições extremamente insalubres em que se realizavam essas grandes obras públicas, seria muito difícil reter um estoque regular de trabalhadores livres em empreendimentos de longa duração". E isto não se restringia ao caso das ferrovias construídas em sítios inacessíveis por empresas internacionais. A construção do Porto de Santos foi um exemplo característico. As companhias concessionárias, como a Docas de Santos no caso, constituíam seções de construção e seus agentes recrutadores percorriam o território nacional reunindo trabalhadores para as obras. Quando censuradas publicamente por seus métodos, sempre era possível passar a responsabiblidade a subempreiteiros. Observa-se um padrão semelhante na construção das hidrelétricas, iniciada neste período de uso intensivo de trabalho, transportando-se todo o material por meio de carroças de burro e carros de boi. Por último, nas obras de saneamento, incluindo o abastecimento de águas, esgotos e urbanização, as condições de trabalho não variavam muito com relação ao que foi discutido até aqui. O fato de algumas destas obras terem sido empreendidas diretamente por órgãos públicos não chegou a alterar as condições de trabalho observadas. O Proletário (2 e 15/06/1911) traz um artigo sobre as condições de trabalho dos operários do saneamento: (...) Enquanto nas obras particulares se trabalha oito horas, lá sendo uma repartição pública os trabalhadores são obrigados a trabalhar onze ou doze horas por dia. Quem conhece aquele serviço sabe perfeitamente o quanto ele é nocivo à saúde (...) e quanto é repugnante (...) mas (...) mais revoltante é o salário mesquinho. A maioria pais de numerosa família recebem de 3$000 a 3$500 por dia: tendo-se em conta os dias de chuva os quais não trabalham, (...) tem como ordenado mensal 60$000 ou 70$000 (...). Enquanto os engenheiros e chefes recebem somas fabulosas (...) os trabalhadores comem um muito rude pedaço de pão de modo a não morrer de fome (...) são insultados pelos feitores que são canalhas. A imprensa de grande formato (...) se desfaz em elogios a essa Comissão (...) esquecendo-se de que esses serviços estão sendo prestados (...) por todos os que lá trabalham (...) vegetando na mais negra miséria. Apenas nas obras de edificação, ou seja, quando erguiam-se edifícios públicos ou privados de valor, havia alguma alteração neste quadro. Aqui havia utilização de trabalho qualificado e não apenas na função de "oficiais" dos "exércitos" de trabalhadores acima referidos. Em suas memórias, um ativista de Santos contrasta o trabalhador do porto, oprimido e descalço, propenso ao alcoolismo, ao trabalhador da construção civil "que almoçava no trabalho, tinha hora para o café, trocava as roupas no trabalho, usava sapatos." Após tornar claro que a vantagem era relativa, por causa da insegurança do emprego e dos acidentes de trabalho , que integravam o quadro geral da vida operária, enfatiza o nível cultural mais alto do trabalhador da construção civil, associado à natureza do seu trabalho. Em suas fileiras a porcentagem de analfabetos era menor, liam alguma coisa, tinham veleidades artísticas. Na época, os edifícios eram ornamentados e, por isto, os trabalhadores esforçavam-se muito para adquirir algum conhecimento de modelagem, escultura e principalmente desenho geométrico, conhecer as escalas e rudimentos de arquitetura. Foram estes os trabalhadores que tornaram-se militantes operários. A estrutura do ramo era muito diferente da que temos hoje tanto com respeito à organização dos negócios, quanto à qualificação dos trabalhadores. No que diz respeito à construção habitacional, predominava a construção por encomenda, espaço de atuação também para pequenos empreiteiros, os mestres de obras, enquanto apenas iniciava-se a construção de habitações para o mercado (XAVIER PEREIRA, 1990). O primeiro aspecto a ser enfatizado é a situação favorável que os trabalhadores qualificados desfrutavam no mercado de trabalho. De fato, seus salários eram razoavelmente mais altos do que os dos trabalhadores do porto, por exemplo, ou os dos operários fabris. Com o imenso impulso do processo de urbanização de São Paulo , Rio de Janeiro e Santos, naqueles anos, era possível para estes trabalhadores pressionar e obter aumentos salariais. Como se sabe, o movimento operário da belle époque foi mais importante pela sua própria existência, do que por eventuais ganhos materiais que tenha atingido. Direitos adquiridos e conquistas materiais, na época, não eram transformados em legislação e exigiam repetidas batalhas para durar. As linguagens políticas por este veiculadas mostram os trabalhadores da construção civil da belle époque atualizados quanto aos debates políticos de seu tempo. Até a Primeira Guerra Mundial, estes trabalhadores da construção civil foram os principais organizadores do movimento operário. Em Santos, eles foram os pioneiros da Sociedade Primeiro de Maio, fundada em 1904, e formavam o núcleo da F.O.L.S. (Federação Operária Local de Santos), com sua escola noturna e sua sala de leitura, onde livros anarquistas, publicações didáticas de vários feitios, e jornais e revistas de São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Barcelona podiam ser encontrados. Seus sindicatos tinham reuniões semanais onde se discutiam notícias nacionais e internacionais assim como teorias sobre a transformação da sociedade. Também em São Paulo e no Rio de Janeiro, os sindicatos da construção civil mantinham viva a chama da dignidade do trabalhador no sentido de impor respeito no local de trabalho, recusando-se a trabalhar em condições obviamente perigosas, restringindo o trabalho a oito horas, e mantendo a união da "classe". Na belle époque uma fisionomia particular de cidade moderna veio a ser definida no Brasil. Nos bairros proletários, uma comunidade multicultural e multiétnica, baseada em afinidades de trabalho e de residência, veio à luz. Pobreza, tensões étnicas, falta de infraestrutura urbana, doença, alcoolismo, todos estes aspectos da vida proletária da virada do século continuam fazendo lembrar o quanto de destruição cultural e afetiva este processo de formação de classes também incluiu. No entanto, na vivência coletiva nestes bairros, ambiente insubstituível para a emergência do movimento operário, estes trabalhadores souberam empreender outro tipo de construção. Contribuíram com sua liderança e maior familiaridade com a ideologia e foram responsáveis pela continuidade organizativa do movimento, criando suas primeiras associações, jornais, sindicatos. Através destes, na belle époque, classe operária fez ouvir sua própria voz. Um ponto merece mais pesquisa e exploração. Pedreiros, carpinteiros, marmoristas e frentistas eram trabalhadores que dominavam uma habilidade específica. Mesmo a hierarquia, nela baseada, era mantida. O que estaria ocorrendo dentro dos canteiros de obras? Mudanças nesta hierarquia? Mudanças na qualificação? Fica claro que o ramo sofreu profundas transformações durante a primeira metade do século XX no Brasil. É suficiente contrastar o pedreiro qualificado, orgulhoso, anarco-sindicalista da época com o atual trabalhador da construção civil, um migrante sem instrução formal ou qualificação profissional, oprimido e mal pago. |
|
|
Referências Bibliográficas: Andrade, Carlos Roberto Monteiro de. "A cidade como um corpo são e belo." in Cidade e História. UFBA/ANPUR. Seminário de História Urbana. Salvador, 21-23 de novembro de 1990; ANPUR, 1992: 77-81. Carvalho, José Murilo. A Escola de Minas de Ouro Preto. O Peso da Glória. São Paulo, Nacional/FINEP, 1978. Cunha, Luís Antonio. A Universidade Temporã. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. Espírito Santo, José Marcelo. "Samuel/Christiano das Neves." in Catálogo de desenhos de arquitetura da Biblioteca da FAU/USP. São Paulo, FAU/USP, 1988:57. Fausto, Bóris. Trabalho Urbano e Conflito Social. São Paulo, DIFEL, 1976. Gama, Ruy. A Tecnologia e o Trabalho na História. São Paulo, Nobel/EDUSP, 1987. Gitahy, Maria Lucia Caira."Qualificação e Urbanização em São Paulo: A experiência do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo,1873-1934."in Ribeiro, Maria Alice Rosa. Trabalhadores Urbanos e Ensino Profissional . Campinas, Ed. UNICAMP, 1986. Gitahy, Malu. "Porto de Santos, 1888-1908."in Prado, Antônio Arnoni (org.).Libertários no Brasil. Memória, Lutas, Cultura. São Paulo, Brasiliense, 1986: 64-81. Hardman, Francisco Foot. Trem Fantasma. A modernidade na selva. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. Hobsbawm, Eric J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. Hobsbawm, Eric J. Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. Pinheiro, Paulo Sérgio e Hall, Michael M. (orgs. ) A Classe Operária no Brasil, 1889-1930 (documentos). São Paulo, Alfa-Omega, 1979, (vol.1). Reis Filho, Nestor Goulart. Aspectos da História da Engenharia Civil em São Paulo, 1860-1960. São Paulo, Kosmos/CBPO, 1989. Ribeiro, Maria Alice Rosa. "A cidade de São Paulo nos anos vinte." Comunicação apresentada à sessão "Mundos do Trabalho" do Primeiro Congresso Brasileiro de História Econômica, São Paulo, FEA/USP, 1993. Rodrigues, Edgard. Socialismo e Sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro, Laemert, 1969. Santos, Maria Cecília Loschiavo. Escola Politécnica (1884-1984). São Paulo. USP. 1985. Szmrecsányi, Maria Irene, "Rio e São Paulo"in Revista USP, São Paulo, Março/Abril.Maio, 1993, 17: 202-219. Szmercsányi, Tamás. "Apontamentos para uma história financeira do grupo Light no Brasil, 1899-1939. Revista de Economia Política. São Paulo, jan-abr. 1986, vol. 6, n.1. Vargas, M."Obras de Saneamento (Abastecimento de Água, Esgotos e Recuperação de Terras)" in Motoyama, Shozo (org.). Tecnologia e Industrialização no Brasil. Uma perspectiva histórica. São Paulo, Ed. UNESP/CEETEPS, 1994a: 85-112. Vargas, M."Construção de Estradas" in Motoyama, Shozo (org.). Tecnologia e Industrialização no Brasil. Uma perspectiva histórica. São Paulo, Ed. UNESP/CEETEPS, 1994b: 137-156. Vargas, M."Construção de Hidrelétricas" in Motoyama, Shozo (org.). Tecnologia e Industrialização no Brasil. Uma perspectiva histórica. São Paulo, Ed. UNESP/CEETEPS, 1994c: 157-189. Xavier Pereira, P. C. Espaço, Técnica e Construção. São Paulo, Nobel, 1988 Xavier Pereira, P.C. "Questão da Construção: Urbanização e Industrialização em São Paulo, 1872-1914." Depto. de Ciência Política/FFLCH-USP, 1990 (tese de doutorado). |
||
|
|
© ponto 1998 | www.ponto.org | 1 | index | extra | lista | cadastro | webmaster@ponto.org |
|